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No porto a poucos metros da foz do Rio Doce o cenário, agora, é de abandono, com barcos quebrados e redes de pesca corroídas. Até novembro de 2015, era desse porto em Regência, município de Linhares, no norte do Espírito, que dezenas de pescadores saíam para o trabalho todos os dias. Enquanto alguns partiam rio adentro, outros seguiam para a pesca em alto mar.
“O sentimento é de muita tristeza, desde o rompimento eu não vinha aqui nesse porto”, conta a pescadora Suely Souza Dias, de 43 anos. O rompimento ao qual se refere é considerado uma das maiores tragédias ambientais do Brasil e mudou de forma definitiva a vida de muitas famílias.
Na pacata Regência, com cerca de 5 mil habitantes, a pesca e o turismo eram as principais fontes de renda. Um meio de vida que foi devastado pela onda de lama resultante do rompimento da barragem da Samarco, em Minas Gerais, no dia 5 de novembro de 2015.
A tragédia matou 19 pessoas e despejou mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério no Rio Doce, conforme aponta denúncia do Ministério Público Federal. A lama desceu pelo rio, atingiu várias cidades, chegou à foz do Doce e atingiu o mar no Espírito Santo. Desde então, por causa das contaminações, a pesca está proibida em toda a área atingida. E ainda não há uma previsão de liberação.
Quase nove anos depois do rompimento, mulheres afetadas diretamente pelos impactos da lama ainda sofrem com outro problema. De acordo com a Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), houve discriminação de gênero para definir acesso a indenizações.
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“O que a gente pôde perceber, com as demais instituições de Justiça, é que a forma como a Fundação Renova reconheceu essas mulheres e cadastrou essas mulheres para fins de reparação não foi condizente com a sua dignidade e com a afirmação das suas atividades econômicas, que elas alegam e continuam alegando ter tido impacto”, explica o defensor público Rafael Melo, coordenador do Núcleo de Atuação em Desastres e Grandes Empreendimentos (Nudege).
A Samarco é uma empresa de capital fechado, uma joint venture (união de empresas) de propriedade das mineradoras BHP e Vale. As reparações e compensações dos danos causados pelo desastre são realizadas pela Fundação Renova – uma organização não governamental privada e sem fins lucrativos. A Renova foi constituída em 2 de março de 2016, por um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).
Segundo o defensor público, estima-se que, de Minas Gerais ao Espírito Santo, cerca de 50 mil mulheres impactadas pela tragédia no Rio Doce não foram devidamente reconhecidas. São mulheres que atuavam, por exemplo, como pescadoras, marisqueiras, comerciantes ou empresárias em áreas afetadas.
“A gente precisa entender um ponto conceitual muito importante: que desastres acabam amplificando e reverberando o preconceito já existente na nossa sociedade. Então, quando a gente cria estruturas de reparação que não enxergam essa questão, a tendência da estrutura de reparação é replicar preconceitos”, destaca o defensor público.
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Mulheres em luta
A pescadora Suely, citada no início da reportagem, sofreu com esse problema. Segundo ela, nos primeiros três anos após a tragédia apenas o marido dela era reconhecido como pescador. Para ela, então, sobrava o posto de dependente do marido. Após muita luta, ela conseguiu o reconhecimento como pescadora.
“Eu espero que mais pessoas que foram afetadas sejam reconhecidas. Tem pessoas aqui dentro de Regência que não foram reconhecidas como pescador. Acho injusto que, até hoje, muitas pessoas não foram reconhecidas”, conclui Suely.
Dentro da Vila de Regência existem outros exemplos de mulheres que enfrentam dificuldade de reconhecimento. A empresária Daniela de Paulo Corrêa conta que tinha uma pousada em Regência – negócio que foi fechado quando a lama chegou e afastou os turistas.
Mesmo com domínio de 95% do empreendimento, em sociedade com o marido, Daniela afirma que o cadastro para o pagamento das indenizações foi feito em nome do cônjuge, e não em nome dela.
“Eu fui bastante discriminada, porque eu tenho uma empresa registrada com meu marido, mas no cadastro da Renova eu sempre fui colocada como dependente do meu marido. Nunca me reconheceram como chefe de negócio. Ela (Renova) me discriminou e não me deu nenhum auxílio na época. Eu sinto como machismo, porque eu tinha 95% da empresa, eu liderava meu comércio”, disse Daniela.
Já a advogada Dyeniffr de Oliveira atuava como empresária no ramo de areia e argila na época do desastre. Ela diz que até hoje não foi reconhecida como impactada e rejeitou ser cadastrada apenas como dependente do pai para o recebimento de indenizações.
“Eles queriam me reconhecer apenas como dependente e eu não aceitei, pelo fato de que eu não sou dependente. Eu tinha minha própria renda antes do rompimento, mas eles não consideram isso. A forma de tratamento me inviabiliza como pessoa que tinha minha própria autonomia”, explicou.
Segundo a advogada, ela ainda tenta um acordo extrajudicial com a Fundação Renova, para que o reconhecimento aconteça. “É um direito meu, eu tenho que brigar, tenho que tentar que reconheçam o meu direito. A gente não pode deixar que as mulheres sejam invisibilizadas. Eu não vou aceitar uma coisa que eu não vivia antes. Eu não era dependente, então eu não vou aceitar esse papel que não me cabe”.
Vitória na Justiça
Uma nova página dessa história de busca por direitos não reconhecidos foi escrita durante o último mês de agosto. Após ação civil pública movida pelas instituições que atuam no caso – Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Ministérios Públicos dos Estados do Espírito Santo (MPES) e de Minas Gerais (MPMG) e Defensorias Públicas do Espírito Santo (DPES) e de Minas Gerais (DPMG) – a Justiça proferiu liminar favorável para as mulheres atingidas pelo desastre do Rio Doce.
Com essa decisão, a Fundação Renova deverá revisar o cadastro de todas as mulheres para que tenham acesso ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), ao Programa de Indenização Mediada (PIM) e ao Sistema Indenizatório Simplificado (Novel).
Segundo a Defensoria Pública, a Renova adotou um cadastro estático, ilegal e inconstitucional, violando os direitos das mulheres atingidas. Entre os problemas apontados estão: ausência do direito à revisão e atualização do cadastro; consagração de uma pessoa física, em grande parte, homens, como chefe de família; e ausência de políticas públicas e adoção de medidas para reparação de atividades tipicamente exercidas por mulheres.
“O fato de ser um processo que condicionou a mulher, muitas vezes, a uma postura subalterna de dependente do marido, que é o titular do cadastro, muitas vezes. Ou, por exemplo, não reconheceu atividades específicas econômicas, onde elas são protagonistas, são exemplos de violação de direitos humanos, que a gente conseguiu constatar. Temos ainda um enorme contingente de mulheres atingidas à margem do processo de reparação”, concluiu o defensor público Rafael Melo.
Renova
A Fundação Renova se manifestou por meio de nota, na qual afirma que “não há que se falar em discriminação contra mulheres ou violência de gênero praticada direta e propositalmente”. Aponta, ainda, ações realizadas para reparar as vítimas e afirma não tolerar qualquer tipo de discriminação ou tratamento diferenciado no âmbito de suas atividades.
Confira, abaixo, a nota da Fundação Renova na íntegra:
“A Fundação Renova atua no âmbito da promoção da igualdade de direitos de gênero das mulheres atingidas, por meio do apoio à autonomia e à geração de renda de grupos de mulheres nas áreas de reparação, como se verifica de diversas iniciativas e incentivos promovidos ao longo do processo de reparação.
Considerando todas as ações voltadas à equidade de gênero, não há que se falar em discriminação contra mulheres ou violência de gênero praticada direta e propositalmente pela Fundação Renova, muito menos na ausência de ações afirmativas direcionadas a esse público específico.
A Fundação Renova não tolera nenhuma forma de assédio, discriminação ou outra forma de tratamento desrespeitoso em nenhuma das suas relações, seja entre colaboradores ou na interação com qualquer terceiro. Nossos valores incentivam uma cultura em que as pessoas são tratadas com igualdade, respeito e dignidade.”
Fonte: ALES